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Dois Tipos de Felicidade




A felicidade nos parece sedutora e enganosa, atraente e perigosa. Pois, muitas vezes, o que desejamos nos traz desgraça, e o que tememos nos deixa felizes. Às vezes, preferimos nos apegar à desgraça, por nos parecer segura e maior, ou porque a consideramos como inocência ou como merecimento, ou porque a vemos como penhor de felicidade futura. Então, talvez desprezemos a felicidade como corriqueira ou como transitória e fugaz. Ou então a temamos como culpa e traição, como uma afronta ou como prenunciadora de uma desgraça.


Antigamente, quando os deuses pareciam bem próximos dos seres humanos, viviam numa pequena cidade dois cantores de nome Orfeu.

Um deles era o grande Orfeu. Inventara a citara, precursora da guitarra, e quando dedilhava suas cordas e cantava, a natureza em torno ficava enfeitiçada. Animais ferozes se deitavam mansamente a seus pés, as altas árvores se curvavam para ele. Nada podia resistir aos seus cantos. Como ele era tão grandioso, cortejou a mais bela mulher. Depois começou o declínio. Enquanto ainda celebrava as bodas, morreu sua bela Eurídice, e a taça cheia partiu-se no

momento em que era brindada.



Mas, para o grande Orfeu, a morte ainda não era o fim. Valendo-se de sua arte requintada, encontrou a entrada do mundo subterrâneo, desceu ao reino das sombras, atravessou o rio do conhecimento, passou pelo cão dos infernos, apresentou-se vivo ao trono do deus da morte e o comoveu com seu canto.

A morte liberou Eurídice, porém sob uma condição. Orfeu estava tão feliz que não percebeu o ardil oculto por trás do favor. Retornou o caminho de volta, ouvindo atrás de si os passos da mulher amada. Passaram ilesos pelo cão dos infernos, atravessaram o rio do esquecimento, começaram a subida em direção à luz, e já a avistavam ao longe.

Então Orfeu ouviu um grito – Eurídice tropeçara. Virou-se

horrorizado, ainda viu a sombra desaparecendo na noite, e ficou só. Fora de si pela dor, cantou sua canção despedida: “Ai de mim, eu a perdi, toda a minha felicidade se foi! “

Ele próprio retornou à luz, mas no reino dos mortos passara a estranhar a vida. Quando algumas mulheres ébrias quiseram levá-lo à festa do vinho novo, ele se recusou, e elas o despedaçaram em vida.

Tão grande foi sua desgraça e tão inútil foi a sua arte. Porém todo mundo o conhece. O outro Orfeu foi pequeno. Era apenas um músico ambulante que se apresentava em pequenas festas, tocava para gente humilde, alegrava um pouco e se divertia com isto. Como não podia viver de sua arte, aprendeu um ofício comum, casou-se com uma mulher



comum, teve filhos comuns, pecou eventualmente, foi feliz de uma forma totalmente comum, morreu velho e satisfeito da vida. Mas ninguém o conhece – exceto eu!



Hellinger, Bert. No Centro Sentimos Leveza. 4a ed. São Paulo. Cultrix.2012 (pagina 123)




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